quarta-feira, 27 de maio de 2009

A complexa relação entre educação e movimentos sociais no Brasil ou Aventuras e Desventuras da Educação Popular em tempos difíceis



Ca
rlos Rodrigues Brandão, num livro que organizou em 1982, conseguiu capturar, na fala de um agricultor do sul de Minas Gerais, o conceito mais acabado de educação popular desenvolvido no Brasil a partir da segunda metade dos anos 70 e que atingiu seu ápice na década seguinte do século passado. Antônio Cícero de Sousa, o agricultor entrevistado, residia numa propriedade que fica entre
os municípios de Andradas e Caldas. Ciço, como é conhecido, descreveu, assim, sua
concepção do que seria educação:
Quando eu falo o pensamento vem dum o
utro mundo. Um que pode até ser vizinho
do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto dar roça, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi pra mim. Então, “educação”. É por isso que eu lhe digo que a sua é a sua e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha? Que a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É ali mesmo: um filho com o pai, a filha com a mãe, com a avó. Os meninos vendo os mais velhos
trabalhando. Se um tipo desse duma educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, com adultos, os velhos, até mulheres, conforme foi dito, assim num acordo, num outro tipo de união, com o povo todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que é nossa também, que então juntasse idéia de todos, nós, num assim, assim, então, havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa do que a gente pensa.
Ciço não era integrante de nenhum movimento social, nem havia se envolvido em qualquer projeto educacional. Se fosse militante de
movimento social dos anos 80, teria destacado, em sua fala, alguns conceitos caros à luta social do período. Teria falado em autonomia política (talvez, nomeando-a de independência ou liberdade), não se vinculando a qualquer instituição, partido e muito menos às intenções de governos. Nos anos 80 era assim. Militantes de movimentos sociais expressavam-s
e a partir de um ideário construído ao longo da segunda metade dos anos 70 que articulava conceitos marxistas e cristãos. Daí surgia um poderoso discurso, que fundava-se na valorização da dignidade do homem pobre, da postura anti-institucional, da luta social pela libertação política e econômica e pela organização autônoma dos pobres em pequenas estruturas de base, locais.
Ciço teria sublinhado, ainda, que qualquer projeto educacional deveria ser libertador, valorizando a cultura do homem simples, constituindo-se num instrumento de politização.
Mas Ciço não era um militante. Mesmo assim, articulou enxada com educação, confirmando que a enxada foi, para ele, uma escola. Mas, logo em seguida, diz que a educação do “doutor” era, também, a educação que a escola formal lhe oferecia. E completa, destacando o erro metodológico dos processos educacionais formais que ignoram os códigos populares de comunicação, o ritmo natural do processo de aprendizagem, a educação como diálogo, troca de intenções.
Este foi o mote dos projetos de educação popular dos anos 70 e 80. De todos educadores que inspiraram (e se inspiraram em) tais elab
orações, Paulo Freire foi o que se aproximou
mais desta motivação e intenção efeti
vamente popular. Não por outro motivo, foi e ainda é uma declarada referência para as iniciativas de educação popular. Significativamente, outro pernambucano conseguiu captar este ideário em poesia. João Cabral de Melo Neto, em seu poema A Educação pela Pedra compreendeu a lógica formativa do homem simples do sertão:
Uma educação pela pedra: por lições;para aprender da pedra, freqüentá-la;captar sua voz inenfática, impessoal(pela de dicção ela começa as aulas).
O tema da cultura do homem simples, que na época se denominava de “cultura popular” era central nesta elaboração. Existiria uma concretude na vida e no cotidiano do homem simples que era, por si, educativa, porque formava o homem forte, autônomo, marcado pela sua identidade cultural. Era a educação do Brasil Profundo. Neste cotidiano, por sua vez, não se encontra momentos épicos, porque
fala aos sussurros, diariamente, repetidamente. E, assim, vai ensinando a lição moral do dia-a-dia, ensina a ser forte.
Paulo Freire compreendia, do po
nto de vista educacional, esta perspectiva do homem simples.Compreendia a perspectiva de Ciço a partir de um sincretismo original: a fenomenologia, o marxismo não-ortodoxo de Gramsci e referências do cristianismo engajado. Um sincretismo que, convenhamos, se aproxima em muito do ideário expresso por Ciço. Entendamos, portanto, o projeto popular educacional do período a partir das proposições de Paulo Freire.
No final dos anos 80 e início dos 90, Paulo Freire organizou uma longa conversa com o também educador e militante norte-americano, Myles Horton. Em diversas passagens deste encontro, Freire discorre sobre a relação entre o saber cotidiano e a formação para a cidadania, a articulação original das concepções brasileiras de educação popular. Vejamos algumas dessas passagens:
É interessante pensar constantemen
te sobre o clima político, o clima social, o clima cultural nos quais estamos trabalhando como edu
cadores. Eu não creio em programas de alfabetização de adultos que sejam simplesmente organizados por alguns educadores em algum lugar e depois oferecidos para analfabetos em todo o país. Isso não funciona. Lembro que em 1975 houve uma reunião internacional, em Persépollis, patrocinada pela UNESCO, com o objetivo de analisar alguns relatórios preparados pela própria UNESCO, avaliações de programas de alfabetização de adultos no mundo inteiro. (...) Uma das conclusões que foi colocada no relatório final foi que os programas de alfabetização de adultos tinham sido eficientes nas sociedades em que o sofrimento e a mudança tinha criado motivação especial nas pessoas para ler e escrever. (...) As pessoas queriam e precisavam ler e escrever, justamente a fim de ter mais possibilidade de serem elas mesmas.
O que Paulo Freire tenta, nesta passagem, revelar é a íntima relação entre a politização (se desejarem, a “instrumentalização política”) do ato de ler e escrever. Em segundo lugar, sugere que esta motivação, no caso de programas de alfabetização em massa, surge a partir de uma dada conjuntura política de mobilização e transformação social. Esta é a senha precisa, na teoria freireana, do processo de fusão da dimensão educacional com a política. São instâncias que se entrelaçam numa dinâmica social única. O alfabetizando necessita politicamente do aprendizado para se apropriar de um instrument
o político. É um movimento inverso de muitos processos de alfabetização oficial onde o educando era objeto das intenções políticas, sendo capturado e apropriado pelo mundo letrado. A alfabetização deixa de ser um favor dos privilegiados, uma política de inserção no mundo que os excluiu, para se constituir num sentimento de libertação. Tom Zé, músico brasileiro, numa de suas entrevistas, dizia que quando leu, pela primeira vez, um texto, ainda pequeno, ficou quatro ou cinco dias sentado, na soleira da entrada de sua casa, pensativo. Nada tinha sido tão fantástico na sua vida, até então. Ele se perguntava se todos que leram aquelas letrinhas tinham entendido o mesmo que ele. E, então, percebeu que tudo o que ele achava do mundo estava errado, porque as letrinhas tinham um poder que ele nunca havia imaginado. Tinha o poder de comunicar sentimentos, de unir os homens de lugares tão distantes. Tom Zé descobriu uma arma de integração, comunicação e poder. Sentiu, ao ler o texto, o mesmo que hoje sentimos ao navegar na internet. Estamos no m
undo, soltos, num poder não visível, mas compreendido. É este poder da alfabetização, esta compreensão política do seu poder, que Paulo Freire se referia.
Mas esta “politização” necessária do alfabetizando possui uma peculiaridade. A alfabetização e o ensino não podem adotar como função a organização, mas ser um meio para este fim.
Nós podemos facilmente ver como a ed
ucação, implicando decisão política, nunca pode ser um ato de voluntarismo. (...)
Como é possível para nós trabalhar em uma comunidade sem sentir o espírito da cultura que está lá há muitos anos, sem tentar entender a alma da cultura? Não podemos interferir nessa cultura. Sem entender a alma da cultura apenas invadimos essa cultura. Meu respeito pela alma da cultura não me impede de tentar, com as pessoas, a mudar algumas condições que, a meu ver, são obviamente contra a beleza de ser humano. Deixe-me dar um exemplo concreto. Tomemos uma tradição cultural importante na América Latina que impede que homens cozinhem. Em última análise, os homens criaram essa tradição e a premissa nas mentes das mulheres é que, se os homens cozinharem, dão a impres
são de não serem mais homens.(...) Tomemos uma segunda comunidade na qual os homens não fazem nada relacionado com o trabalho doméstico. As mulheres fazem tudo na casa e também no campo, e os homens voltam do campo só para comer, mas as mulheres também estiveram lá trabalhando. Ora bem, eu sou um educador e estou falando em oficinas com essa comunidade. Minha pergunta é a seguinte: é possível que eu, com relação à minha compreensão de mundo – porque respeito a tradição cultural dessa comunidade – é possível que eu passe toda a minha vida sem nunca tocar nesse assunto? Sem nunca criticá-los só porque eu respeito sua cultura tradicional? Não, eu não faço isso. Mas eu não estou invadindo ao não fazer isso – isso é, fazendo o oposto, criticando, questionando os h
omens e mulheres dessa cultura para que entendam como aquilo está errado de um ponto de vista humano. (...) Eu insisto: uma coisa é respeitar; a outra é manter e encorajar alguma coisa que não tem nada a ver com a visão do educador. Prefiro ser mais claro e assumir minha obrigação de questionar, mas é claro, eu sei que tenho a obrigação de questionar aquela cultura e aquelas pessoas. Não posso começar no dia que chego. Não posso fazer isso. Então a questão não é estratégica, é tática. Estrategicamente eu sou contra ela. Estou a favor da luta das mulheres. Taticamente posso ficar quieto sobre o assunto seis meses, mas na primeira ocasião que tiver, devo colocar a questão na mesa, embora nos deixe a todos desconfortáveis. (...)
O educador ou educadora como um intelectual tem que intervir. Não pode ser um mero facilitador. (...) O que o educador deve fazer quando ensina é possibilitar os alunos a se tornarem eles mesmos. E ao fazer isso, ele ou ela vive
a experiência de relacionar democraticamente como autoridade com a liberdade dos alunos.
Esta longa passagem da fala de Paulo Freire expressa o papel político do educador que se posiciona numa relação entre cidadãos (no caso, educador e educando). Percebe-se a tensão permanente que esta relação provoca, mesmo na fala de Freire. O educador entende a cultura da comunidade e a respeita, mesmo q
ue não aceitando seus valores e práticas, porque se posiciona como igual e não como possuidor de cultura superior. Mas, como cidadão, posiciona-se assim que ganhar o respeito e confiança da comunidade em que atua. Por que se silencia até ganhar a confiança da comunidade? Por uma questão tática, como diz Freire. Aqui explicita-se com nitidez a tensão política-educação libertadora. O educador encontra-se no fio da navalha justamente porque a sua sensibilidade e leitura da realidade e das relações que estabelece com a comunidade orie
ntam os passos que, como educador, define para expressar sua crítica às práticas sociais que o incomodam. O cuidado tático não é um mero subterfúgio para convencer à mudança mas, na concepção freireana, para estabelecer um diálogo entre cidadãos iguais. Não é a crítica de um superior, mas o contraponto à realidade e valores da comunidade. Daí porque Paulo Freire afirmar, em dado momento, que o papel do educador é possibilitar os alunos a serem eles mesmos. Ao questionar como igual, o educador exige um posicionamento do educando, revela possíveis contradições, exige posicionamento frente à tradição. Em termos psicanalíticos, seria a tarefa de provocar a análise e a construir a autonomia possível do sujeito. Ao “se ver de fora”, o educando passa a se apropriar de suas motivações, ações e valores. Torna-se sujeito. Por este motivo Paulo Freire escreveu tantos textos destacando o ato de ad-mirar, ver-se de fora.
Esta leitura peculiar do papel da educação popular se espraiou por organizações populares, de assessoria à comunidades pobres, nas organizações confessionais mais progressistas (entre elas, a Igreja Católica e a Metodista), em segmentos do movimento sindical e alguns movimentos sociais. Esta tensão educacional foi constitutiva, inclusive, de certa crise de identidade de diversas pastorais sociais e organizações de apoio e assessoria a movimentos sociais quando, em meados dos anos 80, vários mo
vimentos consolidaram suas próprias organizações. De movimento, passaram a organizações. A tensão provocada pelos educadores críticos havia gerado sujeitos políticos institucionalizados. E, então, qual passaria a ser o papel da educação popular no Brasil?
Os casos mais evidentes ocorreram no campo sindical e no movimento de luta pela terra. Centrais Sindicais e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) constituíram, ao longo dos anos 80, sólidas estruturas educacionais, com concepções e estruturas curriculares próprias.
Ciço havia superado sua leitura crítica sobre a educação formal (“que a sua é a sua e a minha é a sua... só que a sua lhe fez”) e sua proposta de um método de diálogo e de respeito ao ritmo do aprendizado cotidiano ( “Se um tipo desse duma educação assim pudesse ter aqui, com
o a gente estamos conversando (...) assim num acordo, (...) com o povo todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, (...) então, havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa do que a gente pensa”) e havia se tornado sujeito da educação popular.
A CUT chegou a criar um sofisticado sistema educacional, o Sistema Nacional de Formação, constituído de escolas sindicais com corpo técnico fixo, programas de formação permanentes, um conjunto de monitores e assessores educacionais (sociólogos, pedagogos, historiadores, filósofos), secretarias estaduais de formação, coletivos de formação por categoria. Cursos permanentes (história do movimento sindical, técnicas de negociação coletiva, matemática sindical, técnicas de comunicação, política industrial, organização no local de trabalho, entre outros) se espalharam pelo país afora. Uma revista específica (Forma & Conteúdo) foi editada para estimular e unificar as metodologias e currículos de formação sindical.
No caso do MST, o arrojo de sua estr
utura educacional foi, também, impressionante.
“Manifesto de Educadores e Educadores da Reforma Agrária” publicado em 1997 num jornal do MST, sintetiza os objetivos do seu projeto educacional:
Queremos uma escola que se deixe ocupar pelas questões de nosso tempo e que ajude no fortalecimento das lutas sociais, e na solução dos problemas concretos de cada comunidade.
(...) Acreditamos numa escola que desperte os sonhos de nossa mocidade, que cultive a solidariedade, a esperança e o desejo de aprender sempre e de transformar o mundo.
Entendemos que para participar da construção desta escola nós, educadoras e educadores, precisamos construir coletivos pedagógicos com clareza política, competência técnica, valores humanistas e unidade de ação.
Lutamos por escolas públicas em todos os acampamentos e assentamentos de reforma agrária do país e defendemos que a gestão pedagógica destas escolas tenha a participação da comunidade Sem-Terra e de sua organização.
O professor de um assentamento ou acampamento rural é orientado para criar condições para que alunos tomem decisõe
s e sejam responsáveis por elas. Seu plano de trabalho deve conter: a) situações de estímulo para que os alunos se organizem e trabalhem em grupos; b) situações de aprendizagem para que tomem decisões por conta própria; c) situações em que planejam e avaliam as ações no coletivo dos alunos; d) situações em que controlam o trabalho e a produtividade; e) situações em que superem os oportunismos dos colegas. Neste aspecto há uma clara inspiração dos processos de formação de lideranças de movimentos sociais.
A participação e organização dos professores é um capítulo a parte. O Setor Educacional do MST está organizado em 15 Estados, sustentado por equipes de educação nas áreas ocupadas e coletivos regionais e estaduais compostas por membros dos assentamentos. Em 1993 foram organizadas de Oficinas de Capacitação Pedagógica (OFOCs) que tinham por objetivo formar professores para os assentamentos e acampamentos rurais. As OFOCs evoluíram para a organização de uma Escola Nacional de Formação do MST. As primeiras turmas de professores se formaram na Escola Uma Terra de Educar, do Departamento de Educação Rural FUNDEP, em Braga, noroeste do RS (criado em 1989). A Escola Nacional possui, hoje, cursos de magistério permanentes. Inicialmente os cursos deveriam atender somente professores de acampamentos e assentamentos, mas logo passou a atender demandas de Prefeituras que apresentavam carência de professores formados. O programa consiste em trabalhos de pesquisa que cada aluno se propõe a desenvolver. O curso é organizado em 6 etapas, cada uma delas com
preendendo um período presencial e outro à distância, com exceção da última etapa, todo presencial, que envolve a Prática Pedagógica Final Acompanhada (estágio).
Também compõe a estrutura do sistema educacional do MST o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA) que desenvolve trabalho educacional e formativo, objetivando ampliar capacidade de produção, industrialização e comercialização dos produtos dos sem-terra. O objetivo explícito é ampliar o número de agroindustrias em assentamentos rurais.
O MST possui material didático específico, como “Boletins da Educação”, “Cadernos de Educação” e “Fazendo a História”.
Como se percebe, esta organização possui uma estrutura articulada de um sistema educacional que se aproxima em muito da estrutura educacional formal brasileira.
Assim, a crise de identidade de tantas organizações que se dedicaram exclusivamente, da segunda metade dos anos 70 até o final dos 80, à educação popular, exigiu um aggiornamento significativo na última década
do século XX. Esta atualização, como afirmamos, foi ainda mais complexa em virtude da transformação dos movimentos sociais dos anos 80. Uma transformação gerada por sua institucionalização. Muitos autores sustentam, como no caso de Zander Navarro, da UFRS, que o processo de institucionalização (o autor sugere, inclusive, certa partidarização) dos movimentos sociais, acabaram por debelar suas características fundamentais. De movimentos sociais à organizações, a mobilização social e a explosão de reivindicações populares passaram a sustentar a estruturação e manutenção da própria organização. A organização teria se tornado um fim, portanto.
Se tal fenômeno se consolidou efetivamente, poderíamos aventar a hipótese, como conseqüência, de uma profunda mudança nos conceitos do que se denominava educação popular. Sua identidade fundacional, libertária, marcada pela tensão entre educador e educando, teria, então, se alterado?
Este é a pista que este texto percorre nas próximas páginas.
De movimento à organização: os novos dilemas da educação popular brasileira
Comecemos recapitulando os principais elementos constitutivos da educação popular brasileira até meados dos anos 80.
São os elementos centrais:
Processo educacional de caráter emancipatório. Neste caso, a emancipação social possui um movimento específico. Enquanto metodologia educacional, respeita o educando como cidadão, possuidor de saberes e valores legítimos. Do ponto de vista político, o processo educacional objetiva estabelecer um processo de constituição de sujeitos coletivos autônomos. A função educacional libertadora é organizativa, pautando-se pelo respeito e promoção à cultura e valores locais, da comunidade envolvida no processo educacional;
Processo educacional como meio. Toda estrutura educacional (currículo e educadores, inclusive) estaria voltada para a constituição de sujeitos coletivos. Seriam estruturas mediadoras, motivadoras da organização popular, voltadas para o fomento da leitura crítica da realidade
dos educandos. Assim, as estruturas da educação popular não eram auto-referentes, se aproximando das características de movimento social e se distanciando da lógica das organizações. A única possível exceção era a formulação metodológica. Este tema motivava encontros e seminários constantes, de troca de experiências e aprofundamento conceitual. A tensão educador/educando era um tema recorrente. Alguns textos de apoio que circulavam à época, como o produzido por Ranulfo Peloso, destacavam o necessário desprendimento do educador em relação à sua residência. Afirmava-se que o educador deveria saber que seu destino era a organização popular constante. Quando a organização social florescia em determinada região, era chegada a hora do educador partir para outras regiões, semeando a auto-organização popular, numa declarada atitude missionária;
Cultura anti-institucional. A educação popular possuía uma natureza comunitária. O ideário confessional, que orientava grande parte das experiências que se disseminaram pelo país entre a década de 70 e 80, contribuíram so
bremaneira para o fortalecimento desta característica. Assim, na medida em que algumas estruturas educacionais se institucionalizavam (escolas paroquiais ou comunitárias, escolas sindicais e outras), passavam a ser dirigidas por instâncias gerenciais comunitárias. Criava-se, assim, ainda que instintivamente, sistemas educacionais paralelos aos formais, oficiais. Obviamente que esta situação ganhava contornos políticos a partir do conceito de autonomia política, francamente difundido nessas experiências à época;
Pedagogia do Oprimido. Tanto os conceitos articuladores, quanto a metodologia educacional empregada orientavam-se por uma peculiar leitura dos conflitos entre as classes sociais e se posicionavam à favor das classes oprimidas. Daí o respeito à cultura das comunidades oprimidas e a postura gradativamente crítica do educador que deveria questionar os elementos “não-humanistas ou opressivos” desta cultura. A tensão educador-educando era similar à tensão sujeito-objeto que as metodologias de pesquisa participante ou pesquisa-ação provocavam no mesmo período. Aqui, grande parte das formulações metodológicas foram caudatárias das teorias de Paulo Freire. Tomaz Tadeu d
a Silva sugere que o marxismo humanista (apoiado em Erich Fromm), a fenomenologia existencialista cristã e a leitura dos críticos do processo de dominação colonial (Memmi e Fanon) de Paulo Freire teria colocado ênfase metodológica nos processos de dominação, em especial, na primeira fase de suas formulações.
O humanismo cristão de Freire enfatizará a postura “humilde” e a “fé nos homens”, sustentando o necessário vínculo dos currículos à situação existencial dos educandos. A problematização empreendida pelo educador, já destacada anteriormente, possui lastros fenomenológicos: o ato de conhecer possuiria uma intencionalidade por parte do educando. O conhecimento não viria de fora da existência do educando, mas se construiria a partir da forma como a realidade se apresentaria na consciência do educando. E é a partir do diálogo entre os homens que este “mundo para a consciência” se materializa, é apreendido. Daí
todo processo educacional adotar como ponto de partida a realidade percebida pelos educandos (temas e palavras geradoras);
Timming do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário. O processo educacional orientou-se pela lógica comunitária, seu ritmo de aprendizagem cotidiano, marcado pela oralidade, pelas tradições, pela relação com a natureza e/ou pelas relações intersubjetivas. Não raro, o educador popular estabelecia laços de amizade e confiança mútua com a comunidade, tornava-se seu defensor e freqüentava os rituais coletivos. O tempo das trocas comunitárias não chegou a ser um objeto de análise no período, mas sempre foi comentado nos encontros técnicos. Havia duas motivações em relação ao tema para os educadores. Uma delas, de natureza metodológica, de respeito ao movimento de tomada de consciência e à cultura local. A outra, fundada na clara intenção de formação moral, de valorização do que se denominava “formação integral do sujeito” e não apenas a formação “instrumental”, voltada para a técnica. Embora não fosse citado em nenhum documento de referência à época, um texto de Bertrand Russell parece plasmar esta intenção dos educadores populares.
Segundo este autor, os momentos de despreocupação seriam importantes no processo educativo porque permitem ao educando avaliar com maior profundidade sua experiência. Sem tais momentos, o processo educacional alimenta a apatia. Critica-se indiretamente o “culto à eficiência” na educação. Segundo Russell, “o divórcio entre os fins individuais e os fins sociais da produção é que torna tão difícil pensarmos com clareza num mundo em que a busca do lucro constitui o único incentivo ao trabalho. (...) Os prazeres da das populações urbanas se tornaram fundamentalmente passivos: ver filmes, assistir a partidas de futebol, ouvir rádio e assim por diante. (...) A vantagem mais importante do conhecimento “inútil” é, talvez, a de incentivar a atitude mental contemplativa. O mundo tem revelado uma exagerada tendência para a ação. (...) O que se necessita não é de tal ou qual informação específica, mas do conhecimento que inspire uma concepção da finalidade da vida humana com um todo.” Não poderia encontrar expressão mais fiel ao sentido do timming do processo educacional defendida pelas práticas da educação popular dos anos 70 e 80.
O sujeito coletivo eleito como interlocutor privilegiado das práticas do que estamos denominando de educação popular foram os movimentos sociais que emergiram no final dos anos 70. Os movimentos sociais fortalecem-se e alimentam-se do mesmo caldo de cultura que fundamentava as práticas da educação popular brasileira. Um era instrumento da estruturação e conformação do outro. Beatriz Costa sugere uma genealogia que se inicia no final da década de 50. Para a autora, este momento de fundação desta perspectiva educacional é marcado pelas reformas de base e pela revolução cubana, que lhe confere as características que se mantém até hoje: referência à justiça social e à democracia e perspectiva de transformação social profunda:
Em geral, era vista como compromisso com as camadas populares e com a sua participação constante nos movimentos e iniciativas. A educação já não vem com aquele sentido assistencial que tinha nas décadas anteriores, quase que de se preocupar apenas em evitar que os meninos se tornassem delinqüentes. (...) Havia referências teóricas propostas por Paulo Freire, pelo Movimento Popular de Cultura, pelos CPCs da UNE (União Nacional dos Estudantes), pelo MEB (Movimento de Educação de Base), por um sem número de iniciativas educacionais voltadas para a valorização e fortalecimento da cultura popular. O personalismo, o solidarismo e o marxismo tiveram grande influência nesse primeiro tempo.
O conceito de educação popular nasce sob o signo da educação informal, para além (muitas vezes, em oposição) ao formalismo e determinismo escolar. Costa sugere ser “todas aquelas intervenções junto aos grupos populares, no sentido do trabalho educativo”. O conceito, ainda vago, vincula educação ao movimento de formação cidadã que ocorre nos movimentos sociais. Daí uma tensão permanente entre educar e politizar, porque a tensão original, fundante, é aquela entre o conceito de educar da militância leninista – muitas vezes adotando um caráter populista onde o saber só é possível emergir quando ausente do mundo da alienação e dominação – e o conceito de educar de origem cristã-fenomenológica, presente na obra de Paulo Freire e nas proposições iniciais do MEB (Movimento de Educação de Base) e do trabalho de organização de base da juventude católica que, mais tarde, dará origem à diversas articulações políticas, como foi o caso da Ação Popular (AP). Neste último caso, o saber sentido, a consciência do real que brota do percebido e traduzido pelo homem que o vivencia gera um novo estatuto político-educativo ao mundo cotidiano, desprezado até então pela leitura das organizações leninistas. Assim, a sabedoria popular passa a ser concebida como um aprendizado cotidiano, a educação pela pedra, do homem simples. O papel da educação popular seria tensionar esta sabedoria que brota do cotidiano pensado com o conhecimento nascido da racionalidade científica. Os anos 70 cruzaram as duas perspectivas formativas, criando um projeto educacional paralelo ao oficial, não necessariamente informal (embora desejasse a informalidade por mergulhar no movimento diário da construção do saber do homem simples), mas que continha uma tensão original entre ser uma alternativa ao modelo educacional vigente e permanecer focalizado nas práticas comunitárias, locais. Uma vocação, enfim, que nunca se define, entre ser universal e permanecer à serviço da comunidade.
O final dos anos 80 gerou uma profunda inflexão na trajetória dos movimentos sociais e, consequentemente, na proposição das práticas de educação popular. Na medida em que aumentaram seu poder político e, em alguns casos, chegaram a se profissionalizar (gestando um corpo administrativo permanente, fluxo estável de recursos financeiros, planejamento de ações unificado e orientações e regras de conduta formalizados no seu interior, assessoria técnica específica), os valores universais e mesmo o ideário humanista-cristão que cimentava a quase totalidade dos movimentos sociais que se espraiavam pelo território nacional passaram a ser apropriados ou reformulados por cada uma das organizações que se consolidavam. A unidade do ideário original foi, lentamente, se cindindo num mosaico de movimentos e organizações. Esta tendência parece se fortalecer no final dos anos 80, quando muitas lideranças de movimentos sociais são lançadas ao parlamento e executivos municipais. O caráter anti-institucionalista e a radical autonomia política dos movimentos sociais sofrem contradições evidentes a partir desta nova realidade. Pode-se afirmar que forja-se uma espécie de “mercado de representações” no interior dos parlamentos e até mesmo na captação de recursos financeiros para manutenção das organizações populares.
Ora, se adotamos como premissa que as práticas políticas constituem a natureza dos agentes sociais, o processo de transformação dos movimentos sociais em organizações teria provocado uma alteração na natureza, inclusive, das práticas educativas (ou formativas) dos mesmos.
Primeiro, porque as demandas difusas de tantos movimentos sociais (saúde, educação, terra, moradia, e assim por diante) se unificavam, até então, exclusivamente em função de um discurso humanista-cristão de lideranças populares. Esta engenharia discursiva adotou como estratégia o apelo emocional que se aproximou, muitas vezes, de uma proposição populista. O discurso emocional e muitas vezes populista, por sua vez, fortalece-se na medida em que questiona a capacidade do sistema institucional absorver as demandas concretas difusas. Em suma, é a emoção e o sentimento de exclusão ou marginalidade frente à ação pública institucional que alimenta a legitimidade do discurso do líder. Daí porque a passagem de inúmeros líderes ao parlamento e executivo municipais criar um curto-circuito na coesão dos diversos movimentos sociais.
Esta nova realidade política gera, de imediato, três possibilidades no rearranjo do sistema de representação dos movimentos sociais.
A primeira, orienta-se pelo afastamento das lideranças em relação aos movimentos sociais dos quais são oriundas, aproximando-se de uma situação de cooptação institucional.
A segunda, é marcada pela separação da prática política dos líderes no interior do sistema institucional, do seu discurso de legitimação, este último voltado inteiramente para os movimentos sociais. Neste caso, a liderança aumenta o teor emocional, o chiste, e a ironia em seus discursos, numa clara manutenção da identidade com sua base social, capacitando-se como interlocutor nas negociações no interior do sistema institucional. É um movimento complexo e delicado, que exige grande habilidade discursiva e um estoque de legitimidade da liderança.
Uma terceira possibilidade é a limitação da pauta da liderança, aproximando-se do que na teoria política denomina-se representação delegada, ou seja, uma representação restrita aos interesses de um movimento social específico. Neste caso, o discurso genérico e universal da liderança se dissipa, torna-se menos emocional e mais técnico e propositivo. Ele deixa de ser representante de um ideário genérico, humanista, e passa a ser defensor de uma pauta e de um público específico.
As três possibilidades que se descortinam para as lideranças sociais, oriundas dos movimentos sociais, e que são alçadas ao poder institucional, desarticulam, portanto, a lógica política e o ideário original desses movimentos, afetando diretamente o projeto de educação popular até então implementado.
Em síntese, no caso da liderança tornar-se um representante delegado no parlamento (ou mesmo, em alguns casos, a partir dos projetos que desenvolve no Executivo), o projeto educacional de um determinado movimento tende a se tornar uma base de sustentação de formação de novas lideranças ou até mesmo de coesão das pautas e práticas da estrutura organizativa que vai se expandindo. Em outras palavras, a representação direta no sistema político institucional transforma o movimento social, através de seu líder, num canal de negociação direta de demandas. Cria-se, em muitas localidades, uma espécie de neo-corporativismo na gestão de políticas públicas específicas, como no caso de deputados e prefeitos vinculados ao MST ou qualquer outro movimento social que transitou na última década para um modelo de organização gerencial mais profissionalizado. A despeito da constante mobilização e pressão social que mantém a “mística” do MST, é comum acompanharmos pela imprensa as inúmeras câmaras setoriais onde a participação de suas lideranças é certa. Obviamente que o projeto educacional de uma organização desta natureza tem como principal objetivo o fortalecimento e coesão da própria organização.
O segundo tipo de prática da liderança, a que cria um discurso divorciado da prática do líder no interior do sistema político institucional tende a esgotar a capacidade de mobilização dos movimentos sociais. Uma prática dicotômica desta natureza coloca em permanente risco a legitimidade da liderança e diminui consideravelmente a capacidade de efetivação e conquista da mobilização de sua base social. E, mais: os militantes dos movimentos sociais não participam diretamente dos fóruns de negociação das demandas, restrito aos seus líderes – agora, deputados, vereadores, secretários ou prefeitos – dificultando a compreensão das diferenças entre a pauta inicial demandada e a agenda definida nos acordos.
A terceira possibilidade, marcada pela cooptação institucional do líder, é a mais ofensiva à unidade dos movimentos sociais, desarticulando seu projeto educacional.
Como se percebe, todas possibilidades de relação liderança/movimentos sociais de novo tipo, que emergem nos anos 90, afetam diretamente os projetos de educação popular do período anterior.
Retomemos as cinco características básicas daquele projeto e vejamos as alterações mais significativas.
Do processo educacional de caráter emancipatório para a aquisição de competências técnicas. Muitas vezes, o caráter emancipatório é substituído pelas competências a serem adquiridas nas negociações. São instituídos níveis de formação, distanciando militância de liderança. Em diversos casos, organizações de menor porte contratam entidades especializadas para desenvolverem programas de formação específico. A referência na competência técnica substitui o foco na autonomia política da comunidade;
Do processo educacional como meio para programas formativos como um fim. No caso de diversas organizações, o processo educacional ou formativo transforma-se em fim, gerando recursos na venda de cursos e programas de formação e qualificação. Os educadores se profissionalizam e deixam de adotar o perfil errante de missionário;
Da cultura anti-institucional para a institucionalização das ações formativas. Esta cultura é quase totalmente esquecida. Todos projetos educacionais são formais e institucionalizados. São criadas estruturas permanentes, específicas de cada organização, com materiais de apoio, recursos didáticos, escritórios e auditórios adaptados aos programas e currículo determinado. Não se torna raro o estabelecimento de convênios desses projetos ou programas educacionais (denominados de “programas de formação”) com órgãos públicos ou instituições internacionais de fomento ao desenvolvimento de comunidades;
Da Pedagogia do Oprimido para a pedagogia do planejamento. São inúmeras as concepções educacionais que passam a vigorar neste campo temático. Em grande parte das organizações, são fundidos conceitos pedagógicos com conceitos e práticas de planejamento estratégico. O discurso classista se transfigura em capacidade de elaborar e executar projetos sociais, constituindo um mercado de atuação social. Muitas organizações, e principalmente fóruns temáticos ou setoriais, sustentam, contudo, referências na pedagogia do oprimido. Esta situação, contudo, não é mais a regra;
Do Timming do Processo Educacional orientado pelo ritmo comunitário para a busca de eficácia. O ritmo e a velocidade dos processos educacionais são definidos pela eficácia da execução de políticas públicas o que lhes confere uma similaridades com os processos de treinamento e aquisição de competências técnicas.
Como se percebe, o projeto original de educação popular brasileira encontra-se, nos anos 90 e início do século XXI, numa encruzilhada. Encruzilhada que redefine o caráter popular de seu projeto original. O último tópico deste artigo procura introduzir uma hipótese de superação deste impasse, atualizando o projeto original de emancipação social.
3. A retomada do projeto de educação popular: a necessária reforma democrática do Estado . As mudanças esboçadas no tópico anterior não ocorrem de maneira única em relação à todas organizações populares. Com efeito, são várias as nuanças verificadas ao longo do país, revelando maior ou menor grau de radicalidade no distanciamento do ideário original dos projetos de educação popular.
Já comentamos casos em que um movimento social estrutura-se como organização e gera um projeto educacional que garanta a sua reprodução institucional. Os objetivos passam a ser a unidade do discurso, a socialização de regras e normas de conduta, a propagação do ideário fundante (ou original) da organização, as competências necessárias para a prática das diversas instâncias ou segmentos sociais da organização (militância, corpo administrativo e direção política). Os projetos educacionais dessas organizações populares são auto-referentes e embora mantenham, muitas vezes, o propósito da transformação social, aproxima-se rapidamente de um programa de formação profissional, que garante o orgulho corporativo que caracteriza as organizações.
Há, entretanto, o surgimento de um novo tipo de formação ou projeto educacional do que poderíamos denominar de “campo popular” (marcado pelo engajamento na organização das demandas das camadas sociais menos privilegiadas) que é oriundo principalmente das organizações não-governamentais. Pautam-se pela elaboração e gestão de políticas públicas onde Estado, mercado e comunidades aparecem com o mesmo estatuto político, articulando-se em ações e programas sociais. Muitos desses programas são financiados por organismos internacionais de fomento ao desenvolvimento ou pelas próprias agências estatais. Em grande parte das experiências vinculadas a este ideário de tipo novo, são desenvolvidos programas curriculares de formação que se aproxima de uma concepção tecnicista de gerenciamento público. Adotam, inclusive, os conceitos básicos da proposta de Nova Gestão Pública implementada pelo Reino Unido e que no Brasil foi denominada, a partir da reforma administrativa formulada pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, de Estado Gerencial. Vejamos um exemplo típico desta formulação.
Em texto intitulado “Três Gerações de Políticas Sociais”, Augusto de Franco, membro da Agência de Educação para o Desenvolvimento (AED) sustenta que o Estado se revela, na atualidade, insuficiente para a promoção ou indução do desenvolvimento. Apoiando-se nas proposições de Claus Offe, sugere uma divisão de tarefas, no campo das políticas sociais, entre Estado, mercado e sociedade civil. A partir deste princípio, analisa o que denomina de três gerações de políticas sociais.
A primeira geração seria marcada pelas políticas de intervenção centralizada no Estado. A “ação redentora de uma tecnoburocracia pretensamente iluminada” articulava-se em quatro premissas:
O Estado se bastava na execução das políticas sociais;
Os benefícios eram apresentados como uma espécie de concessão do poder;
Seus serviços não são percebidos como direitos;
A gestão governamental não era transparente.
A segunda geração de políticas sociais é denominada pelo autor como “políticas públicas de oferta governamental descentralizada”. Segundo Franco, esta geração de políticas sociais recebeu a guarida da Constituição de 1988. As características básicas desta geração de políticas públicas seriam:
O Estado já não é percebido como suficiente, mas ainda cumpre um papel quase exclusivo na execução das políticas;
Procura-se despartidarizar e despersonalizar a oferta de recursos públicos;
Atenção em relação à eficiência, eficácia e efetividade dos programas e ações governamentais;
A concepção dos programas universais são concebidas pelo centro do poder e a oferta de programas é universal e indiscriminada.
A terceira geração, defendida pelo autor, seria a de políticas públicas de parceria entre Estado e sociedade para o investimento no desenvolvimento social. Suas características seriam:
Estado é insubstituível, mas carece de parcerias com a sociedade e mercado;
Política pública não é sinônimo de política governamental;
Investir em desenvolvimento é compreendido como investir em capacidades das comunidades.
O texto, a partir de então, toma uma curso ambíguo. Sugere que nos anos 90 forjou-se um novo paradigma de administração pública, redefinindo o papel do Estado em função do processo de privatização e publicização de funções consideradas não exclusivas de Estado, da descentralização da gestão e controle social de ações governamentais. Deste novo “padrão de relacionamento entre sociedade e Estado” teria surgido “novas realidades emergentes”, a saber:
expansão da esfera pública não-estatal; o crescimento do terceiro setor; o surgimento de práticas de responsabilidade social por parte de empresas e instituições da sociedade civil;a conformação de uma sociedade-rede; a adoção de programas focalizados e flexíveis, baseados em múltiplas parcerias, preocupados com o monitoramento e avaliação e voltados para a sustentabilidade.
A leitura política contida nesta proposição distancia-se em muito do paradigma original da educação popular e absorve pacificamente a possibilidade de gerenciamento público a partir de um pacto de gestão entre organizações da sociedade civil, mercado e agências estatais, inspirado na elaboração do sociólogo alemão, Claus Offe. Esta elaboração, contudo, vem sendo objeto de debates internacionais sobre a necessária reforma democrática do aparelho estatal moderno. Para elucidar os termos deste debate, parece importante retomar as divergências entre Claus Offe e Boaventura Santos a respeito desta proposição.
No final da década de 90, Offe procurou formular uma concepção teórica apoiada numa relação apoiada no tripé Estado, mercado e sociedade civil. Em ensaio apresentando no seminário “Sociedades e Reformas do Estado”, em São Paulo, entre 26 e 29 de março de 1998, intituladoThe Present historical transition and some basic design options for societal institutions sustentou que a crise das instituições públicas estaria inscrita no conflito entre três tendências globais contemporâneas:
a tendência à democracia liberal e ao republicanismo (que envolveria o fim dos regimes militares latino-americanos, o fim dos regimes burocráticos do socialismo real e a emergência de sistemas eleitorais e sistemas racionais de legitimidade em porções do território africano e asiático);
a tendência à globalização ou interdependência global, integrando as nações a partir dos investimentos financeiros, os códigos matemáticos e tecnológicos, as formas de expressão e comunicação, os fluxos migratórios, os recursos militares e a meteorologia (ou clima);
a cultura pós-moderna, que induz ao separatismo e ao desencanto com as normas morais universais.
Offe propôs que somente uma engenharia política híbrida, que articule Estado (baseado no senso de justiça fundado na igualdade), comunidade (que define as regras morais, crenças e valores coletivos) e mercado (baseado na noção de merecimento e interesse) poderia organizar uma nova institucionalidade na busca de solução para os problemas advindos do choque das tendências mundiais descritas acima. O hibridismo pressupõe a prudência para se evitar a excessiva confiança no estatismo (todo Estado grande gera controles oligárquicos da ação social, mormente transfigurados em clientelismo, cinismo político, falta de iniciativa social, corrupção ou clientelismo), ou descrença na regulação estatal (o que diminuiria a capacidade de geração de garantias coletivas); a excessiva crença no mercado ( que, por princípio, é regulado pela tentativa de evasão das ameaças competitivas por parte dos oligopólios) ou na descrença no mercado (que tem elementos pedagógicos de aprendizagem e tolerância entre competidores e libera os indivíduos das tramas paternalistas) e, ainda, a crença no excessivo comunitarismo (que não garante necessariamente a cidadania, mas, antes, a identidade e, portanto, pode gerar uma falsa tolerância, como o caso do multiculturalismo) ou descrença no comunitarismo (fonte de energia moral e de responsabilização de comportamentos).
Por seu turno, Boaventura Santos se opôs, no mesmo evento, à leitura de Offe, a partir do texto A reinvenção solidária e participativa do Estado, polemizando com a vertente racionalista de reforma do Estado, expressa nos estudos de David Osborne e Ted Gaebler, quanto ao hibridismo sugerido por Offe. O autor sustentou que o hibridismo sempre esteve inscrito no ideário iluminista: estava presente em Rosseau e em Locke. Contudo, a reedição desta intenção pareceria anacrônica. O contexto do final do século XX estaria indicando a necessidade de uma nova institucionalidade política, fundada na relação mercado/Estado ou na relação sociedade civil/Estado, tendo em vista a crise do modelo revolucionário – que se apoiava numa ação contra o Estado – e do paradigma reformista – que se apoiava numa ação a partir do Estado. Com a globalização, foram desestruturados os espaços nacionais de conflito e negociação, e a capacidade financeira e reguladora do Estado é minada e aumentam a escala e a freqüência dos conflitos. Assim, se as estratégias de acumulação fortalecem-se, as estratégias de hegemonia e de confiança do Estado esvanecem-se. Trata-se, então, de se pensar um novo padrão societário, uma nova institucionalidade.
Boaventura propõe, a partir de então, a reforma do Estado e da sociedade civil, que denomina Terceiro Setor. Propõe que se compreenda esta reforma como modeladora de um Estado-novíssimo-movimento-social, assentado na idéia de que
Perante a hubris avassaladora do princípio de mercado, nem o princípio de Estado, nem o princípio da comunidade podem isoladamente garantir a sustentabilidade de interdependências não mercantis, sem as quais a vida em sociedade se converte numa forma de fascismo societal. Propõe assim uma articulação privilegiada entre os princípios do Estado e da comunidade sob a égide deste último. Ao contrário da primeira concepção, que explora os isomorfismos entre o mercado e o Estado, esta concepção explora os isomorfismos entre a comunidade e o Estado. [...] Está a emergir uma nova forma de organização política mais vasta que o Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não estatais, nacionais, locais e globais16.
Sugere, assim, a refundação democrática da administração pública, como antípoda da proposta de Estado-empresário. Por outro lado, sustenta a refundação democrática do terceiro setor, exigindo a busca da definição de objetivos que o resguarde da tentação da relação promíscua com o Estado; que descaracterize a participação como sub-formas de relação paternalista e que realize uma coerência mínima entre o universalismo de seus objetivos e as escalas de ação e autoritarismo.
Sua crítica ao Terceiro Setor parte da análise de que não há claramente uma localização estrutural dessas organizações entre o público e privado. Em alguns casos, a motivação e iniciativa coletiva aproximam o terceiro setor do setor privado, como no caso das cooperativas de trabalho, muitas delas resultantes do downsizing de empresas capitalistas17. Em outros casos, aproxima-o do setor público, em virtude da natureza humanitária dos serviços prestados, como no caso das associações de crédito, crédito informal ou crédito rotativo.
Muitas dessas organizações seriam sobreposições de instituições formais às redes informais de solidariedade e ajuda mútua que caracterizam as sociedades rurais, transformando as primeiras em exercícios de benevolência repressiva ou paternalista.
Boaventura desloca a análise sobre as regras e estruturas estatais para o campo da cultura política. Daí a opção que o autor faz ao eliminar o mercado como elemento de contratação social e propor uma profunda alteração nas proposições da sociedade civil moderna. A superação das práticas corporativas possibilitaria a formulação de uma nova cultura política, ultrapassando os marcos da tradição moderna, que distinguiu o indivíduo da esfera de gestão pública.
O debate, ligeiramente reproduzido acima, auxilia na compreensão da difícil escolha que organizações da sociedade civil parecem se encontrar. Um dilema que supera a falsa questão entre ser mais ou menos eficiente e eficaz. Trata-se de um posicionamento político, ideológico, a respeito das intenções da nova engenharia política, da nova institucionalidade pública a ser construída.
No que interessa ao tema deste ensaio, vale dizer que a concepção pedagógica advinda deste dilema pode gerar posturas profundamente distintas. No caso do hibridismo proposto por Offe, e que é absorvido por muitas ongs, como se verifica na análise de Augusto de Franco, a concepção educacional seria evidentemente híbrida, entre a valorização da capacidade gestora das comunidades locais (fomento ao capital social) e a transferência (ou difusão) de tecnologias de gerenciamento de políticas públicas. No caso da proposição de Boaventura Santos, parece haver um espécie de diálogo com os princípios da educação popular brasileira, acentuando-se o caráter provocativo, de desestabilização dos valores corporativos e localistas da cultura comunitária. Porém, na medida em que sugere, como objetivo estratégico, a construção de um novo Estado, concebido como novo-movimento-social, advém daí uma possibilidade metodológica inovadora. Em outras palavras, o hífen que vincula Estado ao conceito de movimento social desestrutura as bases do conceito de Estado moderno, instância política, separada da sociedade civil. A proposição de Santos é o avesso do discurso político moderno, mas não se filia ao discurso fragmentário e particularista pós-moderno. Situa o Estado no campo da conformação social dos direitos e não na limitada noção de institucionalização de regras e normas. O Estado passa a conformar-se como movimento, poroso à participação ativa da sociedade civil. Por seu turno, a participação da sociedade civil no Estado não se dá através de suas organizações, mas da criação de uma nova institucionalidade pública. No Brasil, já temos há uma década experiências desta natureza, como o orçamento participativo e os conselhos setoriais (criança, idosos, saúde, entre outros). A experiência do orçamento participativa na cidade de São Paulo chega a constituir um Conselho Municipal do Orçamento Participativo (CONOP) regionalizado, articulado em rede, que incorpora delegados territoriais (cuja base eleitoral é a jurisdição das 31 subprefeituras), delegados temáticos (eleitos a partir da definição, em vários ciclos de plenárias, das diretrizes das políticas urbanas e sociais) e delegados por segmento social (que representa interesses específicos, como os de homossexuais, populações indígenas, e assim por diante). Este Estado de novo tipo exigiria uma metodologia distinta, embora não oposta, à tradição brasileira de educação popular. Entre outros motivos, porque insere necessariamente iniciativas de formação até então consideradas informais (de âmbito exclusivo da sociedade civil) nas dinâmicas estatais.
Esta última proposição parece ser mais ousada e contemporânea aos dilemas dos movimentos sociais. Parece, ainda, dialogar com uma realidade sentida em tantas iniciativas não formais que ocorrem, por exemplo, em todos assentamentos rurais. É altamente reveladora a existência em assentamentos e acampamentos rurais precários o esboço, invariavelmente, de escolas. Cobertos por lonas gastas e mal arranjadas, crianças e professores desenvolvem programas educacionais. Qualquer educador deve se perguntar o que faz a educação ser prioritária para este e tanto outros movimentos sociais brasileiros. A educação parece ser uma eterna esperança de promoção social e desvelamento de um mundo estranho a quem se sente “desfiliado social”. Mas também é fruto do divórcio quase secular entre os modelos de educação formal (elitista, de natureza taylorista, que objetiva conformação de hábitos sociais) e os modelos supostamente informais (sustentados no conceito de autonomia comunitária).
O novo paradigma proposto por Boaventura Santos impõe a construção de uma nova metodologia de educação pública, herdeira das propostas de educação popular, mas mais ousada politicamente. Uma ousadia que parece ainda muito distante das práticas e formulações dos educadores brasileiros.

Rudá Ricci
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Professor da PUC-Minas e Mestrado em Educação da UNINCOR. E-mail: ruda@inet.com.br

Um comentário:

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