domingo, 5 de julho de 2009

O conceito de Movimento Social na ciência social brasileira.

À medida que, nos últimos anos avança, no Brasil, o debate a respeito da reforma sanitária, têm aparecido referências genéricas aos "movimentos sociais" como interlocutores das tentativas de desenvolvimento de um novo padrão de serviços públicos de saúde. O aspecto positivo deste fato é que esta preocupação tem permitido discutir, na área de saúde, a ação dos distintos grupos e classes na definição das políticas sociais. De alguma maneira, as propostas sobre a reorganização dos serviços de saúde deixam de ser tratadas como questão administrativa ou de interesse puramente técnico; começam a considerar, nos seus cálculos, o papel que demandas coletivas exercem na definição da utilidade e amplitude das políticas sociais.
Esta peculiaridade no trato do tema na saúde coletiva contrasta fortemente com a existência, nas diferentes ciências sociais, de uma considerável literatura a respeito do assunto.Esta literatura, originada principalmente a partir de meados da década de 70, está preocupada em definir as relações entre classes populares e a realização da cidadania no Brasil. A importância e magnitude da temática origina inclusive alguns balanços e revisões a respeito do grande número de publicações sobre o assunto no país.
Deve-se chamar a atenção que o problema da democratização das políticas sociais não é de interesse restrito ao setor de saúde: é um dos eixos cruciais do interminável e escorregadio processo de transição democrática brasileiro. Talvez alguns pontos a respeito da história recente dos movimentos sociais no Brasil ajudem a compreender este complexo jogo de indefinição política e letargia institucional que praticamente paralisa o avanço dos direitos sociais no país. E que lança uma sombra extremamente carregada sobre a dinâmica dos gastos públicos na atual conjuntura.
Uma possível resposta parece indicar que na história recente das lutas populares no Brasil -- como em vários países latino-americanos -- os movimentos sociais foram definidos como expressão, no plano político, dos conflitos originados pelas contradições urbanas. Fundamentalmente, registram a emergência de novos atores políticos em confrontação com o Estado, politizando a questão urbana. A origem da questão urbana está, por um lado, na incapacidade do capitalismo brasileiro resolver as novas, e sempre crescentes, necessidades postas à reprodução da força de trabalho; por outro, no estilo de política urbana do Estado, baseada em inversões públicas rentáveis a reprodução do capital. Esta peculiar via de ação estatal fez com que no Brasil, nas últimas duas décadas, as políticas sociais (saúde, saneamento, educação, habitação, etc.) apresentassem um desenvolvimento excludente, ineficaz e dominantemente privatista.
O antagonismo ao Estado definiu, assim, as condições para a unidade dos protagonistas desses movimentos, acelerando o desenvolvimento de novos sujeitos históricos que poderiam adquirir autonomia e independência e se afirmar como interlocutores políticos fundamentais na construção da cidadania (Jacobi e Nunes, 1982). Os movimentos sociais agregaram segmentos heterogêneos da população urbana e a forma de mobilização ocorreu fora dos partidos políticos e do sindicato. Foram movimentos essencialmente não-institucionais: o caminho encontrado pelas classes populares para ocuparem espaço na cena histórica, pela inexistência de organizações formais de defesa econômica e de representação política diante do Estado e das classes dominantes.
Para a idéia de movimento social, o novo motor da luta política seria a questão da sobrevivência cotidiana das classes populares na cidade capitalista. Assim o eixo da luta de classes deveria ser deslocado do âmbito da produção para a esfera da reprodução. Neste deslocamento de cenário, o principal ator da mudança não mais poderia ser a classe trabalhadora, cujos interesses, em especial no Brasil dos anos 60 e 70, seriam vistos como restritos e corporativos. Caberia às massas urbanas levar de roldão os mecanismos de dominação baseados em um sistema produtivo excludente e que imprimiria seus limites ao criar um padrão desigual para a reprodução da força de trabalho urbana. Neste contexto, aconteceu, primeiramente, o resgate das manifestações "irracionais e anárquicas": quebra-quebras, depredações, movimentos de protesto selvagem, pré-políticos. Estas manifestações afirmariam a potencialidade das classes populares em intervir na redefinição da sociedade através de ações que passariam ao largo dos canais instituconais tradicionais (sindicatos e partidos).
O aspecto que mais interressante nessas observações críticas é a ausência de uma reflexão teórica sobre as razões de ordem intelectual que teriam levado a tamanha ausência desse elenco de questões institucionais nas inquietações políticas das camadas populares. Parece que as análises assumem, a falta de organicidade -- e o caráter volátil -- dos movimentos sociais como um dado da natureza. Na verdade, tanto o esforço de construção literária da idéia de movimentos sociais como o conjunto de trabalhos críticos, constituíram duas singulares vertentes teóricas, cuja principal semelhança é o distanciamento intelectual e prático a respeito do conjunto de problemas "tradicionais" do campo político que, historicamente, apareceram articulados aos problemas da democratização do Estado e da realização da "cidadania".
A cultura burguesa/saber dominante apareceria como todo indiferenciado, que compreenderia todos os saberes nascidos no campo institucional, desde o discurso conservador mais reacionário até as construções teóricas da economia política marxista. Implicitamente, aceitou-se a tese de adscrição aos interesses das classes dominantes de todo saber constituído fora das vivências, sensações, percepções etc, do "homem simples", do "povo". Os intelectuais (agentes) nada mais seriam que legitimadores e reprodutores desse saber de classe. Caberia quebrar o "sistema de poder", do qual faz parte o discurso e o saber que o agente domina e decodificar o que os grupos populares têm a dizer. Essa prática educativa devia assim se restringir ao reforço da autonomia dos grupos populares, para que pudesse dizer de suas experiências, problemas, alegrias e fundar uma identidade que os fortalecesse enquanto grupo.
Essas concepções cimentam, efetivamente, as noções de senso comum que estabelecem um abismo intransponível entre o mundo do movimento social e das vivências populares e o campo dos embates institucionais. De um lado estaria o movimento social, lugar da liberdade (ou da libertação) de afirmação de entidade e de controle sobre a própria existência por parte dos grupos populares; de outro, o "sistema institucional" , lugar da repressão e controle sobre esses grupos (Silva e Ribeiro, 1984). Ocorre assim,um grande esforço das "agências de assessoria" e dos intelectuais preocupados com as "bases" em reproduzir as "percepções e vivências" ou demandas populares sem estabelecer nenhuma mediação com movimentos político-estratégicos mais gerais. Não foi, portanto, o acaso que operou a escassa reflexão sobre a dinâmica institucional do país -- o que não resta dúvida, produziu entre as lideranças populares, uma certa postura teoricamente ativa para a qual as questões de governo político não interessam ao movimento social. Parece que as classes populares brasileiras se moveriam no interior de uma sociedade abstrata na qual as exigências políticas de mudanças estruturais na ecnomia, seja de maneira reformista ou revolucionária, não pudessem fazer parte de sua referência cultural. As repercussões práticas dessas teses já são hoje parte da história: cristalizaram no universo simbólico dos setores da população certo "fetichismo", em relação ao campo institucional que seria algo inatingível, irremediável e essencialmente impuro.
As revisões históricas sobre a relação do Estado com o mundo do social no Brasil reservam à ação pública um papel bastante restrito. O espaço da realização da cidadania estaria limitado pela hierarquização absoluta dos grupos e classes reconhecidos legalmente como aptos a terem acesso e exercerem os direitos sociais. A regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato definem os três parâmetros no interior dos quais passa a definição de cidadania. Mesmo as políticas sociais gerais deixariam de ter grupos específicos legítimos que por elas demandassem, visto que o reconhecimento social se fazia por categorias profissionais.
Assume-se nessas leituras da ação setorial uma expectativa positiva a respeito da possibilidade de surgirem políticas mais racionais, transparentes e funcionais na área social. Nesse sentido, a crítica ao paradigma dos movimentos sociais tomaria como contraponto, a visão simplificada do Estado brasileiro autoritário, essa nova entidade racional-tecnoburocrática, que seria a expressão completa da tomada de consciência pública de suas responsabilidades como provedora de serviços. Ademais, a perda de legitimidade do regime autoritário, induziria à busca de novos mecanismos de articulação e intervenção, isto é, de uma nova institucionalidade política que recolocasse as relações entre Estado e demandas coletivas. Esta "ocidentalização" do Estado, asseguraria domínios de ação funcional relacionados à política social para os quais os movimentos sociais deveriam voltar sua atenção.
Se, por um lado, os movimentos sociais refluíram ou fracassaram porque foram delimitados no espaço e no tempo, o contrário foi o que aconteceu em relação à "modernização" da ação pública: seria, aparentemente, um subproduto natural e irreversível da crise do autoritarismo. A enraizada esperança em uma transição liberal-democrática clássica, fez com que predominasse a idéia de que a superação das contradições estruturais do capitalismo brasileiro pudesse ser realizada através desse novo Leviatã racional e burocrático.
Para efeito de conclusão, gostaria de salientar que a paralisia do processo de transição política recoloca, no mesmo ponto, as interrogações históricas a respeito das relações Estado e classes populares na sociedade brasileira. E, nas condições de vida atual, parece extremamente difícil criar uma nova panacéia que resolva, em um passe de mágica, os dilemas da construção da democracia real no Brasil. Teremos que talvez olhar com mais cuidado os exemplos da história.
Não há dúvida que a natureza volátil do debate de idéias faz com que, entre nós, sejam consagradas como verdades absolutas os mais bizarros preconceitos e os pontos de vista mais obscuros no campo da política, da estética, da filosofia etc. Essa singularidade ideológica fez com que no terreno das idéias políticas, por exemplo, fossem varridas para debaixo do tapete as experiências de afirmação de direitos que tiveram um peso decisivo na construção das sociedades modernas.
Cabe lembrar que, por mais que o fato atormente o discurso liberal e o pragmatismo tecnocrático, ainda não foi possível registrar uma experiência no capitalismo onde a definição de mecanismos coletivos de controle do poder estatal -- a ampliação da cidadania -- tivesse ocorrido sem que a classe trabalhadora ocupasse uma posição de força no campo institucional (Weffort, 1981).
Não há dúvida que os movimentos sociais são uma variável nova na equação política do capitalismo contemporâneo. Resta saber, no entanto, se sua crise de eficácia fará com que sua teoria incorpore essas questões políticas impostas pela "modernidade" capitalista. Os efeitos imediatos dessa recolocação, necessariamente, terão que definir um campo de experimentação de alianças políticas com os organismos partidários dos trabalhadores e de setores democráticos avançados não apenas nas lutas sociais tópicas como nos embates político-eleitorais com o bloco conservador. Essa, talvez seja uma opção prática que seguramente fará com que cada vez que a noção de autonomia seja enunciada se possa perguntar: em relação a que e a quem.
Por último, gostaria de comentar que a entrada da classe trabalhadora, na arena clássica de competitividade dada pelos partidos políticos, obrigou um enorme esforço intelectual e moral capaz de dar organicidade às tarefas partidárias e assegurar direitos sociais conquistados pelas gerações anteriores. Embora, como lembra Weffort, a história social e política da classe operária do ponto de vista da questão da cidadania ainda esteja por ser feita (1981,140), as tarefas organizativas e as lutas por direitos exigiram, sem dúvida, a solução de certas questões técnicas que permitiram responder às sutilezas legais e visualizar os mecanismos decisórios do Estado.


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